Eu Sou Português Aqui
Eu sou português
aqui
em terra e fome talhado
feito de barro e carvão
rasgado pelo vento norte
amante certo da morte
no silêncio da agressão.
Eu sou português
aqui
mas nascido deste lado
do lado de cá da vida
do lado do sofrimento
da miséria repetida
do pé descalço
do vento.
Nasci
deste lado da cidade
nesta margem
no meio da tempestade
durante o reino do medo.
Sempre a apostar na viagem
quando os frutos amargavam
e o luar sabia a azedo.
Eu sou português
aqui
no teatro mentiroso
mas afinal verdadeiro
na finta fácil
no gozo
no sorriso doloroso
no gingar dum marinheiro.
Nasci
deste lado da ternura
do coração esfarrapado
eu sou filho da aventura
da anedota
do acaso
campeão do improviso,
trago as mão sujas do sangue
que empapa a terra que piso.
Eu sou português
aqui
na brilhantina em que embrulho,
do alto da minha esquina
a conversa e a borrasca
eu sou filho do sarilho
do gesto desmesurado
nos cordéis do desenrasca.
Nasci
aqui
no mês de Abril
quando esqueci toda a saudade
e comecei a inventar
em cada gesto
a liberdade.
Nasci
aqui
ao pé do mar
duma garganta magoada no cantar.
Eu sou a festa
inacabada
quase ausente
eu sou a briga
a luta antiga
renovada
ainda urgente.
Eu sou português
aqui
o português sem mestre
mas com jeito.
Eu sou português
aqui
e trago o mês de Abril
a voar
dentro do peito.
José Fanha
Em Portugal, passados 36 anos, cada vez menos se sente "Abril a voar no peito". Cada vez mais reduzimos a nossa existência ao arrebique da moda, ao gadget tecnológico, ao concurso de dança...cada vez menos pensamos nos "outros", que vivem paredes meias connosco, mas que não conhecemos e não queremos conhecer, porque, ao conhecer, estaremos a abrir uma brecha, na muralha da ausência de sentimento e vamo-nos sentir incomodados, talvez até, pensar que é "preciso fazer alguma coisa", para alterar o estado degradante a que chegou a nossa sociedade.
Mas, felizmente, são pensamentos breves, fugazes, rápidamente ultrapassados pelo interesse em saber o que aconteceu à "fulaninha" da nóva série de vampiros que passa na televisão.
A nossa sociedade, fundamentalmente, preocupa-se em permitir-nos viver sem "pensar", sem "reflectir" sobre a nossa vida, o nosso mundo e o que nos rodeia. Bombardeia-nos, diáriamente, com mensagens, directas ou não, transformando o acessório em algo que reputamos imprescindível para viver. Aquietamos a nossa consciência dando contributo para os desalojados de uma tempestade, mas, somos incapazes de ir "mais além".
Até quando?
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